sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

UMA MANHÃ CHUVOSA

O dia sequer havia amanhecido quando ele chegou ao ponto de ônibus na garoa preguiçosa da cidade...
Os mesmos rostos de todos os dias se espremiam sob a proteção velha e enferrujada da periferia.
Um "bom dia" quase balbuciado parece ter saído de sua boca, mas a certeza de que isso tenha ocorrido não existe.
Naquele dia o ônibus lotado de todos os dias estava excepcionalmente esvaziado e um banco livre se apresentou como um oásis no deserto. Era perfeito para aquele "cochilo culposo", quase involuntário, mas inexplicavelmente delicioso.
Antes de adormecer os rostos conhecidos e desconhecidos entravam, um a um, no meio de transporte público, de vidros fechados, embaçados e aparência deprimente.
"In God´s Country" reafirmava sua fé e mesmo com sua letra controversa e aparentemente confusa o fazia professá-la de maneira quase inconsciente.
Um transe promovido pela sucessão de músicas hipnóticas fez com que ele se desligasse de tudo e se voltasse para sua mente. Erros, acertos, dúvidas, medos, incertezas, angústias. A manhã cinzenta da cidade era suficientemente insinuante para uma auto-análise.
A chuva persistente insistia em molhar tudo. E todas as ideias já concebidas pela humanidade pareciam atormentá-lo, misturadas, perturbadoras, avassaladoras.
Muitas cartas na manga se apresentavam para um jogo em que as apostas poderiam significar vida ou morte. Pior, poderiam significar felicidade ou tristeza.
Uma pausa para trocar de ônibus, afinal o caminho até o trabalho era imenso.
Um novo banco livre e um leve sorriso de quem tirou a sorte grande pode ser observado em seus lábios quase imóveis.
Mais alguns segundos em que os cochilos se alternavam com sustos pelo medo de perder o destino. "O sono chegou como uma droga *1" e ele nem percebeu quando as músicas do Coldplay começaram a tocar em seu MP4, doloridas, agonizantes, penetrantes...
Pequenos flashes eram expulsos pelo subconsciente toda vez que, num espasmo surtado, o jovem olhava em volta sem reconhecer o local em que estava. Enfim a percepção de que o caminho ainda não havia acabado e a viagem seguia.
O cochilo final terminou vadio, sem vergonha, sem pudores e uma leve espreguiçada colocou as ideias em ordem.
Todos os dias convidavam à reflexão, mas poucas manhãs eram tão inspiradoras como aquelas chuvosas e cinzentas.
Saltou no ponto certo e, lentamente, caminhou remoendo tudo aquilo em que havia pensado o caminho todo, entre cochilos e devaneios.
A música, dessa vez alta e identificada soava adequada aos pensamentos confusos. O relógio da rua, os carros, os prédios, a cidade barulhenta parecia emudecida pelos pensamentos inquietantes e lá se foi o rapaz.
Um novo dia se apresentava e exigiria dele muito mais que os simples pensamentos preguiçosos de uma manhã chuvosa na cidade encantadora.
Inexorável era sua marcha. E ele marchou, pensando nas contas, no amor, na família, nos estudos, na ciência e em tudo mais o que a sua mente fértil pudesse propor.
Ele seguiu sua vida pensando como nunca em, mais uma manhã chuvosa...
*1 - Frase adaptada de "In God´s Country - U2".

Nenhum comentário: